sábado, 21 de fevereiro de 2009

A FILOSOFIA DO DIREITO EM KANT




Renato Vasconcelos Magalhães
juiz de Direito no Rio Grande do Norte




I - INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa, de forma despretensiosa, contribuir no sentido de trazer à lume alguns tópicos da
filosofia do Direito na obra de Immanuel Kant, fazendo com que o legado jusfilosófico deste "Copérnico" venha, de
alguma forma, contribuir não só para o desenvolvimento da problemática jurídica enquanto questão essencialmente
teórica, como também na aplicação do Direito enquanto realização do justo, entendido tal conceito na forma esboçada
por ROBERTO AGUIAR (1).

Cumpre-nos, inicialmente, situar Kant dentro do panorama filosófico de sua época para que possamos ter uma
visão contextualizada da importância de sua obra. Nascido em Koenisgberg, na Alemanha, em 22 de abril de 1724, e
educado sob o espírito pietista que caracterizava o protestantismo alemão da época, em 1740 ingressa na Universidade
de Koenigsberg, dedicando-se inicialmente a Teologia e posteriormente às Matemáticas, às Ciências Naturais e à
Filosofia. Passado alguns anos, por volta de 1770, é nomeado para a cátedra de Matemática, na mesma Universidade,
que mais tarde trocaria pela de Lógica e pela de Metafísica, lecionando durante 26 anos e falecendo em 12 de
fevereiro de 1824.



II - O DESENVOLVIMENTO FILOSÓFICO


O filósofo das três críticas, como mais tarde viria a ser conhecido, inspirou-se para a construção do seu sistema
filosófico nas correntes que, até então, predominavam: o Racionalismo dogmático de DESCARTES, LEIBNIZ E
ESPINOZA e o Empirismo cético de BACON, HUME E LOCKE. Os racionalistas acreditavam que a busca das
verdades absolutas poderia (e deveria) ser feita sem a intervenção dos sentidos que, de certa forma, obstaculizavam o
conhecimento e, por conseguinte, obscureciam a verdade. O conhecimento, para a doutrina racionalista, seria fruto de
uma simples faculdade, a razão. ESPINOZA professava que "se encontrará a possibilidade de atingir as coisas
particulares partindo do todo concreto, em que não haverá mais a dualidade de sujeito e objeto, pois no todo
estes dois são idênticos" (2). Partindo deste raciocínio chegaríamos à conclusão que o todo na filosofia de LEIBNIZ
corresponderia à figura de Deus que, através do seu conceito, unificaria as idéias e os seus objetos, o que dispensaria a
causalidade entre as coisas e o conhecimento. Por outro lado, os empiristas creditavam todo o sucesso das suas
investigações filosóficas à experiência. Quanto mais próximos dos sentidos e, logicamente, mais distantes da razão, mais
seguro seria o conhecimento. Com os empiristas e, precisamente com BACON, não se colocaria mais o problema do
conhecimento da "coisa em si", porque o intelecto somente conseguiria atingir, através da experiência, os fenômenos,
aquilo que se perceberia sensorialmente. Daí o ceticismo desta corrente. Assim, para os empiristas, o conhecimento
seria fruto de uma outra faculdade, a sensibilidade.

Durante a primeira parte de sua atividade filosófica, que alguns autores costumam dividir em quatro (3), Kant
deixou-se levar pelo racionalismo dogmático tendo, mais tarde, sido desperto deste sono através do empirismo cético.

Ocorre que nenhuma destas correntes, se vistas isoladamente, responderia ao anseio filosófico de Kant. A
primeira corrente, ao se ater somente à razão humana, não conseguiu criar uma teoria que explicasse a própria razão
como elemento inconteste de todo o conhecimento, como assevera IRINEU STRENGER: "tecia uma rede
metafísica e racional em torno do conhecimento de Deus, do mundo e da alma humana, sem ocorrer uma
averiguação indagando com que direito confiava cegamente na pura razão humana em assuntos que
sobrepassam todo os limites da experiência possível" (4). Cria-se na razão como uma fé. A Segunda corrente,
por seu turno, afirmava que todo o conhecimento partiria da experiência, contudo não formulava princípios seguros que
embasassem sua teoria: tendo a matemática e a física verdades necessárias e universais e sendo os dados da
experiência contigentes e particulares, essa necessidade e universalidade não derivaria da experiência, teriam uma outra
fonte e qual seria esta? (5)

É exatamente neste ponto do seu desenvolvimento filosófico que Kant aparece com suas três Críticas, fazendo
confluir as doutrinas filosóficas anteriores, procurando uma resposta ao problema que ora se colocava: como chegar ao
conhecimento sem cair nas antípodas do racionalismo e do empirismo. A resposta vem com a Crítica da Razão Pura
(1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790). Com estas três obras Kant procura tanto
responder a uma filosofia especulativa, essencialmente teorética, quanto uma filosofia prática.

Superficialmente, já que nosso intuito não é precisamente esboçar a teoria filosófica de Kant, mas tão somente
verificar a contribuição de seu pensamento para a filosofia do Direito, arriscamo-nos a comentar, em síntese apertada,
que dentro do sistema kantiano a razão pura haveria de ser um conjunto de conceitos puros "a priori", deduzidos pela
razão da experiência, enquanto que a razão prática deveria abranger os princípios puros do exercício da razão pura
prática no campo da Moral e do Direito.

Assim, a doutrina do Direito encontra-se inserta na obra kantiana na efetivação da razão prática, que
proporciona os princípios básicos de sustentação a uma metafísica dos costumes. Ao justificar esta metafísica Kant
assevera: "se um sistema de conhecimento 'a priori' por puros conceitos se chama metafísica, uma filosofia
prática, que não tem por objeto a natureza, mas a liberdade do arbítrio, pressuporá e requererá uma
metafísica dos costumes" (6)

Vista como uma síntese da sensibilidade e do entendimento o conhecimento em Kant corresponde a uma
correlação entre o sujeito e o objeto. "Nessa relação os dados objetivos não são captados por nossa mente tais
quais são (a coisa em si), mas configurados pelo modo com que a sensibilidade e o entendimento os
apreendem. Assim, a coisa em si, o 'númeno', o absoluto, é incognoscível. Só apreendemos o ser das coisas
na medida em que se nos aparecem, isto é, enquanto fenômeno." (7). Não conhecemos a realidade essencial,
apenas a manifestação fenomenológica das coisas, adaptando-se estas à nossa faculdade e não o contrário (revolução
corpernicana). A problemática do conhecimento em Kant é colocada de forma clara na obra de HABERMAS : "Com
Kant, a tarefa prescutora das possibilidades do conhecimento delimitou o alcance da ciência - da crítica -
fundando uma teoria do conhecimento imune às questões da compreensão do ser inscritas no indizível,
indecifrável e ilimitado mundo metafísico. Desta forma a filosofia se presume um conhecimento antes do
conhecimento, abrindo entre si e as ciências um domínio próprio do qual se vale para passar a exercer
funções de dominação" (8). Veremos mais adiante que esta revolução copernicana opera-se com Kant
principalmente na Ética. Cria-se, assim, um fosso intransponível entre a "coisa em si" e o fenômeno. Na palavras de
CARLOS LOPES DE MATOS :"Dos fenômenos para uma realidade essencial há um passo que não podemos
dar na hipótese do realismo mediato: esta realidade fica sendo incognoscível. Em conclusão, apenas as
ciências tem valor. A metafísica teórica torna-se impossível, só se refazendo as verdade metafísicas por
exigência da razão prática: o dever supõe a alma imortal, a liberdade e Deus" (9).

Esta ruptura laborada por Kant, colocando o 'ser' como inatingível pelo pensamento humano, vem influenciar de
forma explícita o pensamento jurídico de sua época, já que aquele permanece prisioneiro de suas próprias formas
subjetivas de pensar, enquanto que o 'dever ser' impõe-se à vontade humana. (10). Os filósofos do Direito após Kant
passam a se posicionar ou segundo este, reduzindo o Direito a um mero 'dever ser', sem relação com o 'ser', como o
fez brilhantemente KELSEN (11), ou buscando uma saída para a superação desta dicotomia, tentando deduzir o 'dever
ser' do 'ser', já que para Kant isto seria impossível: "Para Kant, pois, o 'dever ser' não pode ser deduzido do 'ser',
não se assenta na estrutura do fato, mas na racionalidade do Subjetivo" (12).

Somente com HUSSERL, através da fenomenologia jurídica, é que se vai superar a ruptura kantiana, tentando
relacionar os dois mundos separados, permitindo uma correspondência entre o 'ser' e o 'dever ser', ou mais
precisamente, entre o ser e o pensar. O Ego, agora com HUSSERL, volta-se intencionalmente para os objetos
individuais, colocando-os em parênteses e, podendo desta forma captar o eidos, a essência ideal do objeto. Esta
tentativa de superação da dicotomia kantiana, através da fenomenologia de Husserl, repercute no pensamento jurídico,
sobremaneira nos trabalhos do jurista alemão ADOLF REINACH (13), que publicou um livro no qual o Direito era
tomado através de uma ótica fenomenológica. Resta, inconteste, que o pensamento kantiano além de originalmente ter
contribuído para o desenvolvimento da filosofia do Direito, despertou entre juristas da época e posteriores
efervescentes discussões jusfilosóficas tanto no sentido de depurar as suas teorias, quanto no intuito de superá-las.

Apesar de ter publicados trabalhos anteriores é somente como a CRITICA DA RAZÃO PURA que Kant
revela os três pontos de sua investigação filosófica : Que posso conhecer? Que devo fazer? E o que me é permitido
esperar? Para a esfera do trabalho a qual nos propusemos, a segunda pergunta é que assume forma relevante. Trata-se
de investigar a possibilidade da existência de princípios 'a priori' do agir humano. Entretanto, isto só é possível na
medida que exista uma razão pura prática, isto é, se a razão pura, poder ser, independente de qualquer motivo, prática.
Este estudo será o objeto da CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA.

Antes, contudo, de partimos para A Critica da Razão Prática, seguindo o desenvolvimento lógico do
pensamento kantiano analisemos, mesmo que superficialmente, a idéia contida na Crítica da Razão Pura.

Nesta obra toda investigação filosófica de Kant se volta para a correlação entre a objetividade da experiência
possível e as condicionalidades 'a priori' e constitutivas próprias do eu puro ou da consciência em geral. MIGUEL
REALE, em artigo lapidar, na Revista Brasileira de Filosofia, pontua "É sabido que uma das contribuições
fundamentais e decisivas de Kant consiste no reconhecimento da função ativa e constitutiva do espírito,
enquanto dotado da faculdade de síntese ordenadora dos dados sensíveis, para a determinação da
experiência e a constituição fenomênica dos objetos, pondo em correlação necessária a 'experiência
possível' com 'as condições lógicas de possibilidade' inerentes ao sujeito cognoscente consideradas de
maneira universal, isto é, não como individualidade empírica, mas como 'consciência em geral'". (14)

A teoria transcendental de Kant, que tem por objeto o conhecimento humano, constitui, na verdade, um método,
que visa encontrar a possibilidade de juízos que venham revelar um conhecimento universal e que não seja tão somente
um desdobramento do próprio conceito, isto é, do sujeito no predicado. Assim, pode-se afirmar que para Kant
transcendente não é o que extrapola os limites da experiência possível, mas o que precede toda experiência, tornando
possível o próprio conhecimento da experiência. "Si el conocimiento fuese transcendente, conoceria cosa
externas; si fuese inmanente, sólo conocería ideas (lo que hay en mí). Mas el conocimiento es transcedental,
es decir, conoce los fenómenos, las cosas en mí, lo que se me aparece como fenómeno" (15).

A Critica da Razão Pura foi escrita exatamente para determinar as possibilidades do conhecimento e os
fundamentos de sua validade. Em Kant a metafísica ontológica é substituída pela metafísica transcendental que não se
arroga mais no interesse de conhecer os objetos transcendentes, seu objetivo, com Kant, se encontra voltado agora
para a estrutura do sujeito transcendental e, em última análise, as próprias formas e validades de se conhecer. Na obra
em comento, Kant define os juízos 'a priori' e 'a posteriori', os juízos analíticos e sintéticos, que servirão de estrutura
para o desenvolvimento de toda sua teoria.

O Juízo 'a priori' constitui o conhecimento universal e necessário que não funda sua validade na experiência,
como é o caso da matemática e da física. Já os juízos 'a posteriori' têm na experiência o seu fundamento de validade.

Juízos analíticos são aqueles em que o atributo explicita o que já se encontra no sujeito (ex. os corpos são
extensos, a esfera é redonda). Nestes casos o predicado já se encontrava contido no sujeito. Os juízo sintéticos, por
sua vez, têm a particularidade do atributo acrescentar ao sujeito algo que anteriormente não lhe pertencia (ex. a mesa é
de madeira, a cadeira é pesada). Há, ainda, as categorias 'a priori' (espaço e tempo) com as quais o entendimento
apreende e conhece as coisas.

Nos juízos sintéticos 'a posteriori' a experiência me ensina que os atributos convém ao sujeito, contudo tais
atributos, em razão do seu próprio fundamento, não podem ser considerados necessários e universais. Já nos juízos
sintéticos 'a priori' o atributo acrescenta algo ao sujeito, mas de uma forma universal e necessária (16).

Ultrapassando a Crítica da Razão Pura Kant vai se ater na ação moral, a qual afirma que somente será possível
se a razão pura for também prática, ou seja, se ela não depender de nenhum fator externo, a não ser sua própria força
interna. Este é o objeto de análise da Crítica da Razão Prática que passa a ser estudada na segunda fase do
desenvolvimento de sua filosofia e é precisamente na razão prática que vai se situar o nascedouro de toda concepção
jurídica kantiana, desenvolvida ulteriormente na Metafísica dos Costumes.

Não se pode negar a influência de ROUSSEAU nesta fase do desenvolvimento filosófico de Kant, bem como a
forte educação pietista que recebera enquanto jovem. Com Rousseau aprende que a dignidade do homem esta fundada
na sua moralidade.

Como dantes afirmado, a revolução corpernicana realizada por Kant ocorreu sobremaneira na Ética. O
desenvolvimento da filosofia moral desde SÓCRATES, que voltara os olhos para a práxis humana ao invés dos deuses
(17), centralizava-se principalmente sobre o objeto enquanto Kant, revolucionariamente, passa a visualizar o assunto
sobre o enfoque do sujeito. Coloca a moral em 1ª pessoa ocorrendo, assim, o processo de interiorização do "eu". A
filosofia volta-se ao próprio conhecimento, colocando-o em cheque, questionando os fundamentos de validade do
próprio pensar. A metafísica passa a ocupar-se do estudo do sujeito transcendental (filosofia transcendental).



III - A FILOSOFIA JURÍDICA

A filosofia jurídica kantiana propriamente dita teve seu início na Crítica da Razão prática mas é principalmente no
Metafísica dos Costumes (18) que Kant aprofunda o seu estudo jusfilosófico . Nesta obra o filósofo alemão retoma
alguma conceitos já discutidos na Crítica da Razão Prática e os aprofunda. Suas principais preocupações e, por
conseguinte, contribuições, são o desenvolvimento paralelo dos conceitos de Direito e moral, delimitando seus campos
e traçando suas características fundamentais e a idéia da coação como nota essencial do Direito.

Kant observa na primeira parte da Metafísica dos Costumes que existe uma dupla legislação atuando sobre o
homem, enquanto consciente de sua própria existência e liberdade: uma legislação interna e uma legislação externa. A
primeira diz respeito à moral (ética no sentido estrito), obedecendo à lei do dever, de foro íntimo, enquanto a segunda
revela-nos o Direito, com leis que visão a regulação das ações externas.

O paralelo entre moral e Direito norteia toda a obra jurídica deste autor, tendo a liberdade como ponto nodal e
pano de fundo desta relação. Kant observa que o verdadeiro critério diferenciador entre moral e direito é a razão pela
qual a legislação é obedecida. Afirma que a vontade jurídica é heterônima, posto que condicionada por fatores externos
de exigência da mesma, enquanto que a vontade moral é autônoma, já que o móbil desta é o dever pelo dever.

Desta forma a mera concordância com a norma, independente do móbil, encontra-se no plano jurídico da
legalidade, enquanto que para o plano ético exige uma concordância com valores internos independente de inclinações.
RAYMOND VANCOURT, comentando a moral dentro da visão kantiana, expõe: "Pode acontecer, de fato, que as
nossas ações estejam materialmente conformes com o dever, mas que nós a façamos por interesse ou
inclinação: é o que se passa com o comerciante que vende ao preço justo para manter a sua clientela, ou com
o homem que ajuda o seu próximo unicamente por simpatia. Comportando-se desse modo eles permanecem
no plano da legalidade. Esta exige apenas que se atue de acordo com a lei, pouco importando as intenções. A
moralidade exige mais: que eu me conforme com e espírito e a letra da lei, que eu me conforme a isso por
respeito por ela" (19).

Resta-nos a pergunta; por que se age por dever(moral) e conforme o dever (jurídica) e não de forma diversa? A
Metafísica dos Costumes tem por objeto o estudo dos princípios "a priori" da conduta humana. Compreender as
condições que estão submetidas o homem, libertas de toda mistura empírica e, dentro destas condições, a vontade, na
concepção kantiana, a qual ocupa papel de destaque em sua filosofia, torna-se constituidora da ética. A vontade, para
Kant, constitui a própria razão pura prática e sendo ela a mola propulsora da ética, seus princípios são erigidos à
categoria do universal. Em outras palavras, a moral que estava centrada no individual e subjetivo agora com a razão
torna-se universal e objetiva. Contudo, como assevera JOAQUIM SALGADO, esta ética para ser universal não pode
ter a sua vontade dependente de uma matéria, precisa ser desprovida de conteúdo: "O ato moral tem de nascer da
própria vontade que, concebida como desprovida de conteúdo e não se determinando por nada do exterior,
mas por si mesma é vontade pura. Por isso ela mesma cria a lei a que se submete, a qual não é dada de fora
por algum objeto ainda que esse seja concebido como bem supremo". (20)

Assim, os princípios desta moral partem do próprio sujeito, sem contudo poder ser considerada subjetiva, já que
não são ditados pela sensibilidade, tratam-se de conceitos derivados da vontade pura ou "a priori" da razão. Ao agir
sobre tal ordem o homem cria princípios universais que devem ser seguidos por todos. Agindo eticamente o homem
não age por si próprio mas por toda a humanidade. Introduz, portanto, a existência do dever como uma forma "a priori"
da razão, que traduz-se no imperativo categórico traduzido por ele nos seguintes termos: "obra conforme a una
máxima tal, que a la vez pueda servir de Ley universal" (21).

Concluímos, assim, que a moral (ética no sentido estrito) kantiana é visualizada sob uma ótica puramente formal,
sem prescrição de nenhum conteúdo. O dever moral é formal (dever por dever), agindo-se apenas por respeito ao
dever.

Por seu turno, diferentemente da legislação moral que tem como princípio fundamental o imperativo categórico
(22), enquanto postulado da razão pura prática, a norma jurídica tem como regra um dever exterior, império de uma
autoridade investida de poder coativo.

Não podemos esquecer que para Kant tanto o Direito quanto a moral têm a sua estrutura de justificação na
liberdade (23) e que a diferença entre um e outro reside no fato de que na moral a força coativa é interna e oriunda da
própria razão pura prática enquanto que no Direito é externa e visa a garantia da liberdade do outro.

Ainda respondendo a indagação anterior, Kant afirma que o dever se assenta no princípio da liberdade, sem a
qual aquele não seria possível. Aduz, ainda, que o dever constitui uma vinculação humana à lei. Entrementes, age-se de
acordo com a lei moral, respeitando-a, somente quando esta é fruto da própria vontade e produto da vontade pura ou
da razão pura prática. Para Kant dever moral e dever jurídico não se diferenciam pela substância. Para a ação moral o
homem age por dever e para o Direito conforme o dever e para ambos os casos o dever só é cumprido porque
derivada da vontade como razão pura prática, sob o imperativo categórico da razão.

Retomando a doutrina do jurista alemão THOMASIUS, Kant assevera o caráter coativo do Direito e toma este
como sua nota característica. Diferente de seus antecessores coloca a coação como nota essencial do Direito,
trazendo-a para dentro do Direito. Por isso Kant fala mesmo de coação e não de coercibilidade. Não seria mais a
faculdade de coagir quando alguém estivesse agindo contrário ao Direito, mas que em toda estrutura do Direito a
coação estaria inerente, como uma malha intrínseca permeando toda a ação humana que se projetasse para o exterior,
já que o Direito só cuidaria das ações exteriorizadas, projetadas para fora do ser humano (ao contrário da moral). Mais
tarde se afirmaria que o Direito não cuida tão somente daquilo que se exteriorizaria, mas levaria em conta o próprio
mundo da intenção. (24)

A pergunta que se coloca agora é como a coação entraria como nota característica do Direito se o conceito de
liberdade encontra-se subjacente à idéia de Direito. Kant pontua que a minha ação será justa se puder conviver com a
liberdade do outro, segundo leis universais e, contrario sensu, será injusta a ação do outro que me impeça de agir
desta maneira. Cria, assim, o imperativo categórico do Direito como decorrência lógica do imperativo categórico da
moral: "Age externamente de tal modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de
todos segundo uma lei universal".

Destarte, tudo aquilo que exerce coação à minha ação justa constitui um obstáculo à liberdade, necessitando,
assim, de uma coação contrária e justa. Demonstra-se o próprio caráter ético da coação dentro do Direito. "Além
disso, a coação que o outro me exerce, contrária à minha ação justa, é um obstáculo à liberdade. O
obstáculos ao obstáculo à liberdade é justo, porquanto concorda com a liberdade segundo leis universais.
Assim, a coação é conforme ao Direito, ou seja, Direito e faculdade de coagir significam a mesma coisa"
(25). Compatibiliza, por conseguinte, a idéia de coação e liberdade, como sendo aquela não antagônica mas necessária
mesma a idéia desta.

Na busca do conceito de Direito Kant afirma a impossibilidade de encontrá-lo pela via empírica, apenas com a
observação do direito positivo. Para ele o grande erro dos juristas de até então foi a procura do conceito na
manifestação do Direito, enquanto legislação positiva, quando deveriam ter ido atrás daquilo que era essencial. A
procura deveria ser feita nos princípios "a priori" da razão pura prática. Para Kant são três os elementos que compõe o
conceito de Direito: "em primeiro lugar, este conceito diz respeito somente à relação externa e, certamente,
prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possam influenciar-se
reciprocamente; em segundo lugar, o conceito do Direito não significa a relação do arbítrio como o desejo de
outrem, portanto com a mera necessidade (bedürfnis), como nas ações benéficas ou cruéis, mas tão só com o
arbítrio do outro; em terceiro lugar, nesta relação recíproca do arbítrio, ao fim de que cada qual se propõe
com o objeto que quer, mas apenas pergunta-se pela forma na relação do arbítrio de ambas as partes, na
medida que se considera unicamente como livre e se, com isso, ação de um poder conciliar-se com a
liberdade do outro segundo uma lei universal". (26)

Acentua-se o caráter tipicamente formal do Direito para Kant, independente de conteúdo, prescrevendo um
complexo de condições através de uma liberdade formal de arbítrios, para uma possível coexistência destes próprios
arbítrios.

Assevera, por fim, o seu o conceito de Direito: "O conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada
um pode conciliar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei universal da liberdade" e deste extrai o seu
princípio universal: "Uma ação é conforme ao Direito quando permite, ou cuja máxima permite, à liberdade
do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal" (27)



IV - CONCLUSÃO

Dentro daquilo que inicialmente foi proposto, ou seja, trazer à baila alguns pontos da filosofia Kantiana e a sua
influência para o Direito, eram estas as considerações a fazer, reconhecendo que, complexo e extenso, o tema é fonte
inesgotável para todos os estudiosos da Filosofia e do Direito, uma vez que a influência deste filósofo germânico para a
história do pensamento humano foi imensa. Suas idéias foram decisivas no surgimento do idealismo alemão. A releitura
de sua obra feita pelos neokantianos, a inspiração a movimentos filosóficos como a fenomenologia e o existencialismo
já atestariam o tamanho da reviravolta que causaria este filósofo no desenvolvimento da filosofia moderna.

Ademais, sua contribuição para a Doutrina do Direito foi incomensurável. Aprofundou e sistematizou a teoria de
Thomasius, descrevendo um paralelo entre moral e Direito. Introduziu no conceito de Direito a idéia de coação,
tomando esta como nota característica daquele. Sem mencionar que o conceito de liberdade e justiça não podem ser
hoje estudados sem se ter como norte a obra deste pensador.



NOTAS

1.Aguiar, Roberto A R. de. O que é Justiça - Uma abordagem dialética. São Paulo. Ed. Alfa-Ômega, 1982, p. 27

2.Matos, Carlos Lopes de. Vista Geral da Filosofia Moderna -Revista Brasileira de Filosofia, vol XXXII, pag.
408.
3.Como observa IRINEU STRENGER a atividade filosófica de Kant divide-se em quatro grandes períodos: O
primeiro vai até 1760 e nesta época Kant ainda é racionalista e dogmático. Sua filosofia se desenvolve dentro
dos limites traçados por LEIBNIZ-WOLF, atraindo-o, nesta época, as ciências naturais mais que a metafísica
pura. O segundo período vai de 1760 a 1769, é o empirismo-cético. Neste período sua maior preocupação é a
crítica ao racionalismo, analisando o valor da lógica pura e chegando à conclusão que esta nunca dará ao
conhecimento resposta que se espera. Afirma, ainda neste período, após as leituras de HUME, ter despertado
do sono dogmático, que a razão jamais poderá descobrir o porquê da causalidade na natureza e o que se possa
saber a respeito, deve ser obtido na experiência. O terceiro período, que vai de 1770 até 1780 é um período de
transição, em que aprofunda seu pensamento crítico. O quarto último período é o criticista com a publicação de
seus grandes livros, que vai de 1781 até a sua morte (Strenger, Irineu. Temas de Formação Filosófica. São
Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 1986. P. 48-9)
4.strenger, Irineu, p.47
5.Vancourt, Raymond. Kant. Lisboa, Ed. Edições 70. P. 19.
6.Kant, Imannuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa. Ed. Calouste GulbeKian, 1985, p. 87
7.Leite, Flamarion Tavares. O Conceito de Direito em Kant. São Paulo. Ed. Cone., p. 30
8.Habermas, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Apud Chueri, Vera Karan de. Filosofia do Direito e
Modernidade. Ed. JM. 1995, p. 15-16.
9.Cf. Mattos, Carlos Lopes de, cit., p. 408
10.A vontade aparece na obra Kantiana desempenhando um papel fundamental. Ela é a própria razão pura prática,
podendo a liberdade ser explicitada a partir do conceito de vontade. Ela é, por conseguinte, 'a faculdade de
desejar não em relação à ação como arbítrio (Willkür) -, mas em relação ao fundamento de
determinação do arbítrio' (Op. Cit, p. 47).
11."Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de algo dever ser não
pode seguir que algo é. O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma
outra norma" ( Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo. 1997, Trad. João Batista Machado. Ed.
Martins Fontes, p. 215)
12.Salgado, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant-Seu Fundamento na Liberdade e na Igualdade. Minas
Gerais. 1986. Ed. EDH- UFMG, p. 175.
13.Sustenta REINACH que o conhecimento jurídico se processa exatamente como se propõe na gnosiologia
husserliana: o pensamento está intencionalmente voltado às vivências determinadas do mundo jurídico (são as
experiências do Direito Positivo ou as situações jurídicas concretas; pondo entre parêntesis, desconectando esta
realidade empírica do Direito, capta a inteligência o Eidos jurídico, os conceitos jurídicos, que são estruturas
ontológicas imanentes e 'a priori', condicionantes da experiência particular" (Mendoça, Jacy de Souza.
Problemática Jurídico Filosófica Atual. Revista Brasileira de Filosofia. Vol. XXI, fasc. 81, p. 53.
14.Reale, Miguel. Meditações Sobre a Experiência Ética. Revista Brasileira de Filosofia. Vol XVII, faz. 68,
out-dez/67,p. 382.
15.Martínez Paz, E. Influência de Kant sobre a Filosofia jurídica contemporânea -Córdoba, 1925
16.O que há de necessário e universal no conhecimento é oriundo de sua própria razão, de suas estruturas
intrínsecas, que são as condições 'a priori' transcendentais procuradas por Kant.
17.. "Sócrates realiza também a passagem do 'logos' mítico das narrações cosmogônicas, teogônicas e
heróicas, que constituem modelos indiscutíveis de comportamentos na esfera da práxis, para o de
'logos' epistêmico, como discurso que demonstra por meio dos fatos ou da razão, de modo reflexivo ou
crítico". Cf. Joaquim, Carlos Salgado. Cit. P. 148
18.que divide-se em duas partes: A Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude
19.Cf. Vancourt, Raymond. Cit. p. 33. Kant foi acusado por alguns filósofos de sua época de excesso de rigorismo,
como foi o caso SCHILLER.
20.Cf. Salgado, Joaquim Carlos. Cit. p. 159
21.Juntamente com este imperativo categórico Kant nos oferece mais outras duas formas: "Obra de tal manera,
que la persona humana, ni en ti, ni en otras, sea tomada nunca como un simple medio, sino como fin" e
ainda " Obra de tal manera, que tu voluntad sea fuente de legislación universal"
22."Age como se a máxima de tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza"
23."Justa é somente a ação, sob cuja a máxima a liberdade de arbítrio de cada um pode coexistir com a
liberdade de todos. A liberdade é a condição de toda vida moral e, portanto, também do direito.
Nenhum direito e nenhum dever tem sua origem noutra coisa senão na liberdade: von der alle
morallische Gesetze, mithin alle Recht, sowohl als Pflichten ausgehen". Cf. Salgado, Joaquim Carlos. Cit
p. 253.
24."Por outro lado se é certo que o Direito só aprecia ação enquanto projetada no plano social, não é
menos certo que o jurista deve apreciar o mundo das intenções. O foro íntimo é de suma importância
na Ciência Jurídica" Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo, Ed. Saraiva. 10ª edição. 1983,
p. 55.
25.Kant, Imannuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Apud, Leite, Flamarion Tavares. Cit. p. 37
26.Kant. Imannuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. P. 336, Apud Op. Cit p. 68-69.
27.Cf. Leite, Flamarion Tavares. Cit. p. 70.




BIBLIOGRAFIA

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